sábado, 30 de julho de 2011

[CRÍTICA] Um Corpo Que Cai

Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Alec Coppel e Samuel A. Taylor
Elenco: James Stewart (John "Scotie" Ferguson), Kim Novak (Madeleine Elster / Judy Barton), Tom Helmore (Gavin Elster)
Duração: 128 min.
Ano: 1958


Um Corpo Que Cai é daqueles filmes que provam que determinadas obras só podem ser plenamente apreciadas quando se tem um senso crítico mais apurado. Pelo menos este foi o meu caso. Assisti o filme há alguns anos atrás, e na ocasião o achei muito monótono, extenso demais, e apesar de ter gostado da história, considerei a produção superestimada pelos admiradores de Hitchcock.

Hoje resolvi revê-lo, e a experiência foi outra. O filme cresceu muito no meu conceito, assim como meu respeito e admiração pelo diretor.

Começa pelo fato de Hitchcock ter bom gosto, a ponto de atiçar a curiosidade do expectador logo na abertura estilosa e enigmática, seguida pela perseguição na qual somos introduzidos ao protagonista, e é explicada a origem de sua fobia.

Hitchcock é paciente na apresentação dos personagens, seus dramas, e na construção da premissa de toda a trama. Logo em seguida começa a longa investigação de John, segmento este que talvez seja um dos motivos que afastam quem prefere histórias com um ritmo mais "dinâmico". Foi o que aconteceu comigo na primeira vez que assisti o filme.

Acontece que grande parte do brilhantismo de Hitchcock se evidencia nas perseguições de John a Madeleine. Todo o cuidado com que apresenta os detalhes que ligam a personagem à sua antepassada, dentro do museu. A parte em que ela visita o túmulo de sua bisavó, quando a fotografia fica enevoada, sugerindo a sobreposição da realidade por uma dimensão além-túmulo. E o turbulento instante em que o casal se entrega a seus sentimentos, e se beijam diante de um mar que oscila entre o revolto e o plácido, ilustrando o estado psicológico de ambos.

Em suma, Um Corpo Que Cai não é um suspense para qualquer espectador. Exige muita paciência, e muita capacidade de observação e interpretação para extrair de cada cena o significado incutido pela direção extremamente precisa de Hitchcock, que usa cada técnica a favor da história, desde o conhecido zoom out e track in simulando a vertigem de John, até seu sonho delirante, que através de efeitos especiais econômicos são bastante eficazes em retratar a paisagem mental do personagem no momento em que se encontra.

A trilha sonora de Bernard Herrmann é excelente, e essencial para enriquecer o clima de mistério da trama, mas acredito que o filme não seria prejudicado se ela deixasse de ser tão intrusiva em alguns pontos da história. O tema romântico do casal, por exemplo, torna-se repetitivo e redundante depois de um tempo, especialmente no terço final da história, quando passar a ser usado com muita freqüência.

James Stewart e Kim Novak fazem um bom trabalho, especialmente o primeiro, que retrata bem as mudanças por que o personagem passa depois de um dos pontos de virada da trama. Já a atriz apresenta uma atuação irregular, por vezes é inexpressiva, especialmente na primeira parte da história, algo que acaba por corrigir na metade final do filme.

Em suma, Um Corpo Que Cai é uma de suas maiores realizações de um diretor no auge do domínio de suas técnicas, especialmente por empregá-las a fim de torná-lo passível de múltiplas interpretações e rico em significados. É um filme que merece ser revisitado de tempos em tempos pelo que ele esconde em detalhes que podem passar despercebidos numa primeira sessão.

[CRÍTICA] Festim Diabólico

Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Hume Cronyn e Arthur Laurents
Elenco: James Stewart (Rupert Cadell), Joan Chandler (Janet Walker), John Dall (Brandon Shaw), Farley Granger (Phillip Morgan), Cedric Hardwicke (Sr. Henry Cantley), Constance Collier (Sra. Anita Atwater), Douglas Dick (Kenneth Lawrence), Edith Evanson (Sra. Wilson), Dick Hogan (David Kentley).
Duração: 80 min.
Ano: 1948

O que impressiona em Festim Diabólico, além do domínio da técnica empregada por Hitchcock, a precisão de seus enquadramentos, e a sincronia com o "momentum" dos atores em cena, é toda a concentração do elenco que, exceto por aqueles pontos da história em que ele se faz necessário, não há sinal de nervosismo diante do desafio que lhes foi proposto pelo diretor.

Todos os atores estão muito bem afiados, e suas interações surgem naturalmente, mas John Dall especialmente se destaca, pela forma como oscila seu temperamento e postura no decorrer da trama. Inicialmente confiante na inteligência e impecabilidade de seu crime, quando se encontra diante da figura de Rupert (James Stewart), que minutos antes ele exaltava como um dos homens mais respeitáveis que conheceu, suas fragilidades são expostas através da gagueira que domina sua fala, do nervosismo de seus gestos. E notem como ele procura se recompor logo que Rupert sai de cena, e ele volta a conversar com os demais convidados, tudo isto num plano sem cortes, que testa os limites do talentoso ator.

James Stewart também brilha em cada aparição de seu personagem, tornando o suspense da história ainda mais enervante, quando constamos sua inteligência e sua capacidade de observação, e a maneira como investiga suas suspeitas, conduzindo meticulosamente seus diálogos, de forma a instigar Brandon e Phillip a uma reação que rompa o véu de inquietação e estranheza que ambos criaram sem intenção.

Apesar de curto, e de ser filmado de forma a passar a impressão de que a história se passa em tempo real, o roteiro é excepcional na tarefa de apresentar seus personagens, suas relações entre si, e com a vítima do crime, e é preciso ao revelar informações sobre o passado de Brandon, Phillip e Vincent, que torna-os mais complexos em suas motivações e decisões do que suspeitávamos no início da trama.

Uma das muitas obras-primas produzidas por Hitchcock, e sem dúvida um dos melhores suspenses de todos os tempos. Verdadeira aula de como equilibrar técnica, talento e roteiro, todos perfeitamente alinhados, numa harmonia que pouco se vê em filmes do gênero, e de qualquer outro.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

[CRÍTICA] Arriety

Título Original: Kari-gurashi no Arietti
Direção: Hiromasa Yonebayashi
Roteiro: Hayao Miyazaki, Keiko Niwa
Elenco (vozes): Mirai Shida (Arietty), Ryûnosuke Kamiki (Shô), Shinobu Ohtake (Homily), Keiko Takeshita (Sadoko), Tatsuya Fujiwara (Spiller), Tomokazu Miura (Pod), Kirin Kiki (Haru)
Duração: 94 min.
Ano: 2010


O deslumbramento visual provocado pelas produções do Estúdio Ghibli é incontestável. A cada nova produção seus animadores encontram uma nova forma de nos impressionar com sua técnica tradicional de dar vida a mundos e personagens fantásticos.

A riqueza de detalhes encontrados em Arrietty nos joga num mundo que pouco difere do nosso, exceto por um pequeno detalhe: a existência de pessoas diminutas que fazem o que podem para não se revelarem às "gigantes", mesmo que sua sobrevivência dependa de pequenos objetos e porções quase insignificantes de alimentos que tomam "emprestados" deles. Se um dos pequeninos é visto por um gigante, toda a sua família é obrigada a mudar para um outro local onde ninguém suspeita que eles existem.

Tecnicamente beirando a perfeição, o traço simples, marca registrada do estúdio, é rico nas sutilezas que consegue imprimir a seus personagens. Todos se movem, gesticulam e se expressam de maneira verossímil. Além disto há todo o minucioso trabalho de animar folhas que se movem conforme os personagens abrem caminho através delas; o cuidado em levar em consideração que na escala de Arriety e sua família os líquidos têm uma aparência mais densa e globular; ou que uma fita dupla face pode ser muito bem usada para escalar móveis.

Aliás, outra grande diversão que o filme proporciona é justamente descobrir na casa de Arriety objetos no nosso dia-a-dia, e para que finalidade são usados por eles. Neste ponto a primeira metade da história cumpre muito bem a tarefa de introduzir o espectador ao mundo em miniatura dos personagens, e deixá-lo tão fascinado por ele como Arriety fica ao ver pela primeira vez a imensidão de uma cozinha "de verdade", ao explorá-la com seu pai.

O roteiro de Hayao Miyazaki e Keiko Niwa aposta em uma premissa simples, e investe mais na construção do cenário e do problema enfrentado por Arriety e seus pais, mas deixa um pouco a desejar na elaboração de seus personagens.

A protagonista parece uma versão mais madura e menos encantadora de Kiki (O Serviço de Entregas da Kiki), aborrecida e deprimida em boa parte do filme. Já Sho é inexpressivo, e apesar do papel central que ocupa na trama, ele não funciona muito bem como representante do espectador naquele mundo fantástico. Diferente de obras como Meu Vizinho Totoro e Ponyo, falta ao elenco de Arriety um pouco mais de entrega e paixão, para que nos importemos mais com eles.

Ainda assim merece ser conferido, tanto pela qualidade da animação, como pela bela trilha sonora, e pelo cuidadoso trabalho de tornar verossímil a existência daquelas pessoinhas.

terça-feira, 19 de julho de 2011

[CRÍTICA] Encontros no Fim do Mundo

Título Original: Encounters at the End of the World
Direção: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog
Elenco: Werner Herzog (narrador), David Ainley (ecologista marinho) , Samuel S. Bowser (biólogo celular), Regina Eisert (fisiologista), Kevin Emery (instrutor de sobrevivência da Estação McMurdo), Ryan Andrew Evans (cozinheiro da Estação McMurdo), Ashrita Furman (multi-recordista mundial), Peter Gorham (físico da Universidade do Havaí), William Jirsa (linguista e perito em computador da Estação McMurdo), Karen Joyce (perita em computador), Doug MacAyeal (glaciologista da Estação McMurdo), William McIntosh (vulcanólogo e geocronologista), Olav T. Oftedal (ecologista nutricional), Clive Oppenheimer (vulcanólogo), David R. Pacheco Jr. (bombeiro viajante), Stefan Pashov (motorista de empilhadeira da Estação McMurdo), Jan Pawlowski (zoólogo), Scott Rowland (departamento de transporte da Estação McMurdo), Ernest Shackleton (ele mesmo em imagens de arquivo), Libor Zicha (mecânico)
Ano: 2007
Duração: 99 minutos


Este é o segundo documentário de Herzog que assisto (o primeiro foi "O Homem Urso"), e ainda não foi desta vez que ele me decepcionou, muito pelo contrário.

Sua direção parece mais refinada aqui do que em seu trabalho anterior. As perguntas são menos incisivas na tarefa de desnudar seus entrevistados. Herzog parece mais interessado em extrair de cada um deles um testemunho profundo que o ajude a construir um quadro amplo da relação entre a humanidade e a natureza. Quase como se este fosse uma continuação temática de seu documentário anterior.

As perguntas que Herzog faz a seus entrevistados incomodam, não por serem intrusivas, mas pela natureza inusitada delas. O atordoamento que ele causa é notável em vários momentos, pois são o tipo de questionamento que poucos estão dispostos a responder, ou sequer fazer a si mesmos, e é nas respostas que recebe, e na forma como conduz sua "investigação", que se encontra o elemento fundamental para que este documentário se sobressaia.

Outra peculiaridade de Herzog é seu hábito de deixar sua câmera filmando seus entrevistados mesmo após terminada a entrevista. Eles se tornam seu objeto de estudo, dos quais tenta captar reações, e comportamentos resultantes da zona de desconforto da qual acabou de libertá-los. Para Herzog o ser humano nada mais é que outra espécie a ser estudada.

As belas imagens contemplativas, somadas a uma trilha sonora que estimula a introspecção, formam uma simbiose perfeita com as divagações filosóficas que servem de transição entre um segmento e outro do documentário. Auxiliam ainda a transmitir ao espectador o misto de desesperança e ansiedade que permeiam cada indagação de Herzog, que por vezes parece buscar alguma prova de que ainda há esperança para a humanidade, um mistério essencial escondido naquela vastidão gelada.

Encontros no Fim do Mundo pode até não ser o tipo de documentário que irá mudar sua vida, mas certamente o fará pensar a respeito do papel de todos nós neste mundo, e sobre nossas próprias origens, e o que deixaremos como legado aos que vierem depois, mesmo que sejam alienígenas num futuro remoto, desvendando os mistérios de uma espécie já extinta. Só por isto merece figurar entre os melhores.


Nota: 5 de 5

[CRÍTICA] Lixo Extraordinário

Título Original: Waste Land

Direção: João Jardim, Karen Harley, Lucy Walker

Elenco: Vik Muniz (ele mesmo)

Ano: 2010

Duração: 94 minutos


Talvez o maior mérito de Lixo Extraordinário é dar rostos, histórias e tridimensionalidade a uma parcela da população para a qual poucos de nós davam o devido valor, respeitando-os como individualidades. Como bem observa Vik em certo momento do documentário, de longe, no meio daquelas montanhas de lixo, aquelas pessoas mais parecem formigas.

Através de diversos depoimentos muito honestos Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley, apresentam uma variedade de personagens que despertam nossa simpatia e admiração, seja pelas lições que passam ao contar pequenos casos cotidianos, ou episódios mais dramáticos de suas vidas, de maneira muito autêntica e desinibida.

Descobrir no meio daquele cenário desolador um catador de materiais recicláveis que lê Nietzsche, e explica com invejável desenvoltura as idéias de Maquiavel, traçando com inteligência paralelos entre a Florença do escritor, e o Rio de Janeiro do catador, é uma das muitas surpresas que temos, a qual por si só denuncia nosso preconceito com relação àqueles indivíduos.

Não há como ficar indiferente diante da sabedoria de Valter; do idealismo de Tião; da beleza que luta para sobressair-se do corpo mal cuidado e judiado de Suelem; do carinho maternal da Irmã; e da perseverança de Isis.

Cada um deixa sua marca, e conquista o público pela autenticidade com que se expõe diante das câmeras. E os realizadores foram extremamente felizes ao não apelarem para o sentimentalismo barato em nenhum momento. As tragédias e alegrias surgem naturalmente em meio às conversas.

O vínculo que se cria entre seus personagens e o público é tão forte que sentimos com eles a mesma satisfação que sentiram ao ter suas vidas mudadas. É emocionante vê-las se dando conta do papel que desempenharam, e descobrindo a projeção alcançada pelos trabalhos que realizaram com a matéria prima com a qual tiveram contato por toda uma vida.

Revelador e tocante, Lixo Extraordinário, acima de tudo, é um dos documentários mais humanos que já tive a chance de assistir. Uma verdadeira lição de vida.


Nota: 5 de 5

[CRÍTICA] El Otro

Título Original: El Otro
Direção: Ariel Rotter
Elenco: Julio Chávez (Juan Desouza / Manuel Salazar / Emilio Branelli / Lucio Morales), María Onetto (Recepcionista do Hotel), María Ucedo (mulher entre rios), Inés Molina (Claudia, a mulher), Arturo Goetz (tabelião), Osvaldo Bonet (Padre de Juan)
Ano: 2007
Duração: 83 minutos


Em El Otro o diretor Ariel Rotter cria uma representação sensorial e poética da solidão, não como um estado de espírito a ser temido, mas como uma necessidade que muitos de nós temos em determinados momentos de nossa vida, quando é preciso que nos afastemos dela a fim de enxergá-la sob uma nova perspectiva.

Na trama acompanhamos Juan Desouza, um homem que antes mesmo de se fazer presente na tela, já demonstra o carinho que tem pela namorada enquanto correm os créditos iniciais. Carinho este também presente no cuidado com que trata o pai idoso, ao ajudá-lo a tomar banho. E apesar da vida pacata que leva, os minutos iniciais já apresentam um ruído de fundo que gera um leve desconforto. Não demoramos muito para descobrir que sua causa é a rotina à qual Juan está preso.

É notável a forma como Rotter passa essa sensação de peso que a mesmice tem sobre o indivíduo, mesmo que sequer conheçamos a vida pregressa de Juan, tudo graças a uma cuidadosa montagem e, o mais importante, à ausência de trilha sonora.

El Otro apoia-se quase inteiramente nas sensações que transmite ao expectador por intermédio dos sons ambientes, como pássaros cantando, o roçar um tecido na pele, a respiração de Juan quando encontra-se sozinho em um lugar onde o silêncio impera. O design de som é espetacular, captando cada pequeno ruído que auxilie na criação de uma atmosfera imersiva para que o espectador sinta-se no lugar de Juan.

Ao lado do protagonista vamos descobrindo indícios de uma angústia e melancolia que ele expressa em olhares compassivos direcionados a idosos que o fazem lembrar do pai, que se encontra na reta final da vida, e o põe diante da eminência cada vez maior de sua própria mortalidade. Isto desperta nele uma vontade de romper consigo mesmo e ir por caminhos imprevistos, mesmo que eles o levem apenas a perseguir uma desconhecida pelas ruas de uma cidade que não é a dele, dormir ao relento, ou trepar numa árvore para comer frutas enquanto sente o frescor do vento matinal no rosto, e a paz que o invade apenas por dar vazão à sua espontaneidade.

Ariel Rotter cria uma experiência mais sensorial do que dramática, e tem ao seu lado o talento de Julio Chávez, cuja atuação é ao mesmo tempo discreta e rica em sensibilidade e sutileza.

O plano final é belíssimo em sua simplicidade, e som que acompanha os créditos finais demonstra a criatividade e a inteligência da direção de Ariel Rotter, que tira proveito de cada elemento deste longa excepcional.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

[CRÍTICA] MicMacs - Um Plano Complicado

Título Original: Micmacs à Tire-Larigot

Direção: Jean-Pierre Jeunet

Roteiro: Guillaume Laurant, Jean-Pierre Jeunet

Elenco: Philippe Girard (Gravier), Dany Boon (Bazil), André Dussollier (Nicolas Thibault de Fenouillet), Jean-Pierre Becker (Libarski), Stéphane Butet (Matéo), Urbain Cancelier (Le gardien de nuit de Marconi), Nicolas Marié (François Marconi), Jean-Pierre Marielle (Placard), Yolande Moreau (Tambouille), Julie Ferrier (La Môme Caoutchouc), Omar Sy (Remington), Dominique Pinon (Fracasse), Michel Crémadès (Petit Pierre), Marie-Julie Baup (Calculette), Patrick Paroux (Gerbaud)

Ano: 2010

Duração: 105 minutos


Jean-Pierre Jeunet tornou-se um diretor especialista em contar fábulas modernas, a começar pela fotografia de seus filmes, sempre muito colorida, e criando uma versão mais lúdica do mundo que conhecemos. A partir desta ambientação fantasiosa, os exageros e situações que beiram o absurdo tornam-se aceitáveis, especialmente quando eles agem para defender uma ideia simples: o combate ao enorme poder da indústria armamentista.

Apesar da premissa, Jeunet confere leveza à história, seja através da excentricidade da maioria dos personagens que povoam a trama, ou do fascínio infantil que desperta no espectador ao apresentar as invenções de Petit Pierre (Michel Crémadès), e as estratégias mirabolantes e divertidas que o grupo liderado por Bazil (Danny Boon) usa contra os traficantes de armas.

Além disto, o diretor tira proveito de cada situação que o permita mudar o estilo narrativo da história, como já havia feito em Amélie Poulain e Eterno Amor. Os exercícios imaginativos de Bazil, feitos na forma de animações estilizadas, e a forma como é mostrado o que dois personagens pensam que está acontecendo em torno deles, com base apenas nos sons que escutam enquanto estão de olhos vendados, são dois ótimos exemplos da inventividade de Jeunet.

Já a direção de arte é excepcional, desde o refúgio construído inteiramente com aparelhos e máquinas recicladas, até a sala onde le Fenouillet (André Dussollier) exibe sua coleção de pedaços de corpos de personalidades famosas.

Além do primor técnico, o elenco é muito bem aproveitado. Mesmo apresentando atuações equilibradas, destacam-se Omar Sy, cujo exagero bem dosado de Remington diverte, e, claro, Dominique Pinon, ator fetiche do diretor, cuja presença é sempre bem vinda. E Danny Boon se sai bem ao interpretar Bazil, que parece um personagem recém-saído de um filme mudo, comunicando-se mais por gestos do que por palavras.

Apesar do roteiro um tanto confuso em alguns momentos, MicMacs firma-se como uma obra encantadora, cercada daquele ar nostálgico que Jean-Pierre Jeunet especializou-se em dar a seus filmes, e satisfatória como entretenimento e deleite visual. Se o final não deixá-lo com um sorriso de satisfação no rosto, é porque seu coração é bem amargo.

[CRÍTICA] Harry Potter e As Relíquias da Morte - Parte 2

ATENÇÃO: há alguns SPOILERS para quem não assistiu o filme.

Photobucket

Direção: David Yates
Roteiro: Steve Kloves
Elenco: Daniel Radcliffe (Harry Potter), Emma Watson (Hermione Granger), Rupert Grint (Ron Weasley), Ralph Fiennes (Lord Voldemort), Alan Rickman (Severus Snape), Helena Bonham Carter (Bellatrix Lestrange), Matthew Lewis (Neville Longbottom), Evanna Lynch (Luna Lovegood)
Duração: 130 min.
Ano: 2011


Com um começo tumultuado, movido a muita correria, destruição, e mortes off-screen de alguns personagens que tiveram sua importância anteriormente na série, este último capítulo de Harry Potter cumpre bem a tarefa de transpôr para a telona todo o caos e desordem que se instalam no maior conflito de bruxos já retratado na série e, arrisco dizer, na história do cinema.

É quase impossível não relacionar a grande batalha que ocorre em Hogwarts, aos combates épicos que marcaram o capítulo final da trilogia "O Senhor dos Anéis". Tem de tudo, desde grandes massas humanas se chocando, até trolls gigantes tocando o terror na multidão de alunos e professores lutando lado a lado desesperadamente. Tudo impressionante e visualmente impactante, mas é justamente aí que reside a maioria dos problemas.

Na maior parte do filme David Yates dirige a história com certo distanciamento, e em vários momentos pode-se acusá-lo de uma frieza que compromete o choque emocional que diversas cenas tinham o potencial de exibir.

Personagens que conquistaram a simpatia do público ao longo da série se despedem sem ganharem sequer uma morte digna de ser exibida, e não há toda a preocupação que o diretor teve no capítulo anterior em mostrar a maneira como protagonistas e coadjuvantes estão sendo afetados por toda a tragédia que os cerca. Neste ponto a direção de David Yates decepciona por ser quase inteiramente burocrática.

Apesar das falhas, o diretor acerta, creio que especialmente graças ao roteiro de Steve Kloves, na cuidadosa seqüência em que Snape, enfim, alcança sua redenção. É um dos poucos momentos realmente emocionantes deste último filme aquele no qual vemos todas as ações, atitudes e posturas adotadas pelo personagem diante de Harry Potter serem justificados. Sempre considerei Snape um dos personagens mais intrigantes e complexos da saga, e vê-lo finalmente sob uma perspectiva que justifica suas escolhas, e que ainda por cima serve como forma de desmistificar um outro personagem, tido até aqui como a bússola moral da série, é um dos grandes momentos de toda a série.

É inteligente também a variação que a fotografia de Eduardo Serra sofre ao longo do filme. Reparem como ela se torna mais granulada e "suja" quando as cenas de batalha se tornam mais intensas, remetendo diretamente a filmes de guerra como O Resgate do Soldado Ryan e Cartas de Iwo Jima.

Outro acerto de Yates é a forma como ele retrata a passagem em que Harry se encontra em seu "pós-vida pessoal". Aquela dimensão mergulhada em luz funciona perfeitamente como contraponto da floresta escura na qual o personagem "morre" nas mãos de seu nêmesis, que pode ser interpretada simbolicamente como uma extensão da mente corrompida de Voldemort.

Além disto, a decisão de representar o fragmento da alma do vilão que vive dentro de Harry Potter como um bebê abortado, além de ser ousada para uma série que começou de maneira tão inocente e encantadora, é rica em seu simbolismo, e demonstra o respeito do diretor pela inteligência crescente de um público que teve seu gosto amadurecido ao longo de 7 filmes que serviram tão bem a este propósito.

Mas, apesar de toda a qualidade técnica, "Relíquias da Morte 2" é sintético demais, e falho como celebração do grande feito que a série representou para o cinema, e na tarefa de transmitir para o público a sensação de vitória dos personagens diante do maior desafio de suas vidas. Quando a história chega à sua conclusão, ela soa anti-climática, e perde ainda mais sua força quando sede espaço à elipse final.

Quando a última cena é exibida, fica difícil não pensar que Harry Potter merecia um filme com duração maior, que se preocupasse mais em oferecer uma despedida emocionalmente marcante, do que uma seqüência de cenas de ação grandiosas, lotadas de efeitos especiais de primeira linha, mas sem aquele calor humano que esperamos sentir em nossos momentos finais ao lado daqueles personagens com que convivemos por quase 10 anos.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

[CRÍTICA] O Cheiro do Ralo

Título Original: O Cheiro do Ralo
Direção: Heitor Dhalia
Roteiro: Heitor Dhalia, Lourenço Mutarelli, Marçal Aquino
Elenco: Selton Mello (Lourenço), Paula Braun (Garconete), Lourenço Mutarelli (Segurança), Tobias Vai Vai (Caixa da Lanchonete), Sílvia Lourenço (Viciada), Lorena Lobato (Mulher Casada), Fabiana Guglielmetti (Noiva), Alice Braga (Garçonete Dois), Suzana Alves (Cadela In Pink), Hugo Villavicenzio (Homem do Gramofone), Pedro (II) Vicente (Homem dos Livros), Dionísio Neto (Homem dos Discos), Alvaro Muniz (Encanador), Wolney de Assis (Homem da Caneta), Jorge Cerruti (Homem do Olho de Vidro), Milhem Cortaz (Encanador), Calico (Homem da Perna), Flavio Bauraqui (Homem da Caixa de Música), Roberto Audio (Homem da Flauta), Ariel Moshe (Homem das Cédulas), Estevan Gonzalo (Homem do Autógrafo), Abrahão Farc (Homem dos Soldadinhos), Martha Meola (Secretária), Morgani (Homem Abertura), Morelli (I) (Homem do Violino), Hossein Minussi (Encanador), Leonardo Medeiros (Jesus Kid), Fernando Macário (Entregador de Pizza), Waldir Grillo (Homem do Ancinho), André Frateschi (Homem do Vodu), Gustavo Trestini (Tenente), Xico Sá (Homem do Gênio da Garrafa), Luciano Gatti (Homem do Livro), Paulo (III) Alves (PM 1), Nivaldo (Homem da Gaiola), Paulo César Peréio (Pai da Noiva), Zé Pineiro (Homem do Revólver), Augusto Pompeo (Homem do Faqueiro), Negro Rico (PM 2), Mário Schoemberger (Homem do Relógio)
Ano: 2006
Duração: 112 minutos


Como um personagem tão detestável pode ser o protagonista de um filme, e tornar a tarefa de assisti-lo divertida? Com um ótimo roteiro, elenco à altura, e uma direção que transforme repugnância em absurdos hilários, e insights surpreendentemente profundos sobre seu protagonista.

O cheiro do ralo, o olho "do pai", a bunda, a obsessão em possuir tudo que deseja, todos elementos que funcionam em duas camadas, seja como elementos cômicos, ou como pequenas pistas do que levou Lourenço a ser como é, e desenvolver as neuroses que possui e se agravam ao longo da história.

É irresistível a tentação de associar o odor do ralo com os desejos reprimidos e socialmente reprováveis do inconsciente de Lourenço, e ver o olho "do pai" como uma representação simbólica do superego, vigiando cada atitude do protagonista, que tenta apaziguar sua consciência tornando o "olho" seu cúmplice.

A "bunda" é um caso a parte, podendo representar tanto o desejo desesperado de Lourenço em estabelecer algum tipo de conexão apaixonada com outro ser humano, ao mesmo tempo que representa, na visão deturpada de Lourenço, sua vontade de ligar-se a uma "força superior" (completando o quadro que ele mesmo pinta, ao associar o cheiro do ralo ao Inferno).

Lourenço acaba pagando por seus pecados logo depois de alcançar a "salvação/bunda", ao ser mortalmente baleado pela garota de quem abusou.

É por possibilitar múltiplas leituras como esta que O Cheiro do Ralo torna-se um entretenimento inteligente sem soar excessivamente intelectual, e permitir que o expectador o aprecie sem exigir do mesmo uma leitura profunda da história.


Nota: 4 de 5

domingo, 3 de julho de 2011

[CRÍTICA] Os Imperdoáveis


Título original: Unforgiven
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: David Webb Peoples
Elenco: Clint Eastwood (Bill Munny), Gene Hackman (Little Bill Daggett), Morgan Freeman (Ned Logan), Richard Harris (English Bob), Jaimz Woolvett (Schofield Kid), Saul Rubinek (W. W. Beauchamp), Frances Fisher (Strawberry Alice)
Ano: 1992
Duração: 131 min.




Clint Eastwood, demonstrando sabedoria e talento, desmistifica o gênero que ajudou a ganhar força e aclamação, ao lado de um elenco de personagens arquetípicos do faroeste, que vão desde o novato que quer ganhar fama, ao velho parceiro que abandona sua vida pacata para um último trabalho. Mas pára por aí. Logo nos vemos diante de um herói alquebrado, que mal consegue subir num cavalo; um ex-companheiro de armas que fraqueja na hora de matar um homem; e um novato que, apesar de afirmar o contrário, não tem a menor vocação para a vida que sonha em levar.

Paralelo a tudo isto temos a breve história de English Bob (Richard Harris), que funciona como recurso metalingüístico, comentando a própria tarefa a que o filme se entrega: a desconstrução de um mito.

É notável ainda a semelhança física entre o Kid de Jaimz Woolvett e o Colorado Ryan, interpretado por Rick Nelson no clássico Onde Começa o Inferno, algo que me fez pensar diversas vezes se foi uma escolha intencional de Eastwood ou uma feliz coincidência. Ambos os personagens são jovens pistoleiros que buscam fazer seu nome, mas a abordagem aqui vai contra o tom imponente e glorioso do filme de Howard Hawks, e trabalha a favor da desmistificação da figura clássica do rapaz cheio de valentia.

A competência de Eastwood na direção fica flagrante durante toda a duração do longa, que jamais soa cansativo e desinteressante, mas se destaca na seqüência carregada de suspense em que Little Bill (Gene Hackman) instiga Beauchamp (Saul Rubinek) a usar uma arma contra ele. Toda a condução da cena é tão bem feita e envolvente, que o espectador jamais consegue prever o que virá a seguir.

Sem dúvida um dos melhores momentos da carreira de Clint Eastwood, um mito que se desfaz e se reconstrói, mais imponente e venerável que em seus dias de glória.




Nota 5 de 5

[CRÍTICA] Gran Torino

Título original: Gran Torino
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: Nick Schenk e Dave Johannson
Elenco: Clint Eastwood (Walt Kowalski), Christopher Carley (Padre Janovich), Bee Vang (Thao), Ahney Her (Sue), Brian Haley (Mitch Kowalski), Geraldine Hughes (Karen Kowalski), Dreama Walker (Ashley Kowalski), Brian Howe (Steve Kowalski), John Carroll Lynch (Barbeiro Martin), William Hill (Tim Kennedy)
Ano: 2008
Duração: 116 min.


Ao contrário do que algumas pessoas dizem de Gran Torino, não o considero como mais uma tentativa de Eastwood em investir numa abordagem de sua própria persona cinematográfica, semelhante à vista em Os Imperdoáveis. Este filme parece mais uma brincadeira do ator/diretor consigo mesmo, e isto é algo que fica evidente desde as primeiras cenas em que seu Walt Kowalski aparece. Sua interpretação é cheia de resmungos e rosnados caricatos, e sua insensibilidade diante da morte da esposa é um tanto artificial.

sábado, 2 de julho de 2011

[CRÍTICA] Perseguidor Implacável


Título original: Dirty Harry
Direção: Don Siegel
Roteiro: Harry Julian Fink, Rita M. Fink, Dean Riesner, John Milius e Jo Heims
Elenco: Clint Eastwood (Inspetor Harry Callahan), Andrew Robinson (Charles "Scorpio" Davis), John Vernon (O Prefeito), Reni Santoni (Inspetor Chico Gonzalez), Harry Guardino (Tenente Al Bressler), John Larch (O Chefe), John Mitchum (Inspetor Frank DiGiorgio), Mae Mercer (Sra. Russell), Lyn Edgington (Norma), Woodrow Parfrey (Sr. Jaffe)
Ano: 1971
Duração: 102 min.




Aqui Eastwood cimenta sua persona de homem durão que se considera acima da lei e faz justiça com as próprias mãos. É o tipo de personagem com o qual o ator está tão acostumado, que mal notamos sua interpretação, tão à vontade ele demonstra estar naquele papel.