terça-feira, 8 de novembro de 2011

[CRÍTICA] A Infância de Ivan

08-11-2011-ivan




Título original: Ivanovo detstvo
Direção: Andrey Tarkosky
Roteiro: Vladimir Bogomolov e Mikhail Papava
Elenco: Nikolay Burlyaev (Ivan), Valentin Zubkov (Capitão Kholin), Yevgeni Zharikov (Tenente Galtsev), Stepan Krylov (Cabo Katasonov), Nikolai Grinko (Tenente Coronal Gryaznov), Dmitri Milyutenko (Velho), Valentina Malyavina (Masha), Irma Raush (Mãe de Ivan)
Ano: 1962
Duração: 95 min.


Ivan é um garoto que cresceu na guerra, e tudo que lhe resta de inocência se resume às lembranças que tem da mãe morta, e de uma menina que foi sua amiga numa vida que parece ter se passado há séculos.

Seria muito fácil dizer que A Infância de Ivan fala da perda da inocência e funciona como uma das muitas metáforas que existem sobre rito de passagem, embora seja uma das leituras possíveis, além de ser a mais óbvia de todas. A verdade é que quando falamos de uma obra de Tarkovsky, simbolismos e metáforas devem ser deduzidos com muita cautela para não cair nas armadilhas das quais o próprio diretor tentava fugir através de sua filosofia cinematográfica, cujo principal objetivo era capturar a vida de maneira pura, ao invés de transformar suas obras em meras representações da própria.


08-11-2011-ivan-01

Tendo isto em mente, Ivan é um garoto que age segundo seus próprios instintos, com o único intento de continuar vivo, e lida vez ou outra com suas lembranças e sonhos, os quais surgem naturalmente, como conseqüência da vida que possui, daí a forma como Tarkovsky os insere na trama sem usar de artifícios técnicos para distingui-los das cenas que se passam na “realidade”. Essa é outra das características que marcariam toda a obra do diretor. Os sonhos são tão organicamente integrados à trama, que tentar separá-los da realidade concreta é um erro, que dificulta a tarefa de não apenas compreender, mas vivenciar a dinâmica interna que move a vida de cada personagem que surge na tela.


08-11-2011-ivan-02

Mais importante do que diferenciar a realidade dos sonhos, e estes últimos das lembranças, é encarar a sucessão fluida dos mesmos como um só todo, algo que a própria montagem sugere que façamos. Assim, Ivan voando pela floresta no início do filme é tanto uma fuga como um resultado lógico da maneira como o garoto lida com seus sentimentos, não de maneira consciente e arbitrária, mas como um processo natural desenvolvido a partir da necessidade de assimilar a situação  na qual se encontra. Sim, ele precisa de um alento, de um meio de aliviar a tensão da existência já muito dura e inflexível que habita, mas os três níveis de realidade não se anulam, pelo contrário, são interdependentes. Sua vida não é apenas a guerra, mas o que ocorre além dela. É a viagem num caminhão sob a chuva em cima de um monte de maçãs ao lado de sua amiga, e também a conversa com sua mãe à beira do poço, e ainda a brincadeira com a lanterna na sala escura que, sem aviso, se transforma num pesadelo onde revive momentos dolorosos, medos e maus presságios.


08-11-2011-ivan-03

Nikolay Burlyaev, ainda muito jovem na época das filmagens, interpreta com grande maturidade e naturalidade o protagonista. E é curioso notar que Ivan é o personagem mais integrado ao mundo que o cerca, sem alimentar sonhos de um futuro melhor, ou uma vida além daquela sob constante risco de morte. Isto pode ser constatado quando levamos em conta o Capitão Kholin (Valentin Zubkov), uma das figuras paternas presentes na vida de Ivan. Diferente do menino, ele nutre esperanças de uma vida além dos campos de batalha, planeja uma fuga, e flerta com a enfermeira Masha (Valentina Malyavina). Esta última, por sua vez, é a personagem mais ingênua do filme, e se permite sonhar mais do que todos os outros. Reparem como as cenas entre ela e o Capitão destoam levemente do restante do filme. A floresta onde o casal praticamente dança em torno dos troncos das árvores é limpa, quase celestial, algo que mais tarde estabelece um contraste gritante quando o sonho acordado de Marsha é abruptamente seguido da imagem de dois cadáveres deixados na fronteira com o território inimigo como advertência a qualquer um que tentar passar dali.


08-11-2011-ivan-04

E não dá pra falar de um filme de Tarkovsky sem citar a ambientação. O diretor, como poucos, consegue o exato tom exigido por cada cena, a começar pelo barulho insistente de gotas, que muito economicamente reforçam a idéia de um ambiente cheio de umidade, transmitindo para o espectador aquele abafamento certamente sentido pelos personagens. O mesmo valendo para a angústia que surge durante a seqüência da fuga de barco, que consegue ser ao mesmo tempo realista e fantasmagórica, além de passar uma sensação agourenta, e comprovar a excelência da fotografia de Vadim Yusov, que está entre o seleto grupo de profissionais que conseguiram produzir cenas noturnas extremamente naturais.

A Infância de Ivan possui todas as características do brilhantismo que seria desenvolvido nos futuros filmes de Tarkovsky, além de suas marcas registradas (não faltam personagens refletidos em espelhos, cavalos e águas correntes). Constata-se aqui o gênio em formação, e uma preocupação constante com a mais absoluta expressão da vida, algo que alcançaria níveis cada vez mais ousados e poéticos nas décadas seguintes.


Nota: 4 de 5

2 comentários:

  1. Muito interessante a técnica e a premissa desta obra, Rodrigo. Realmente é admirável o seu cuidado em descrever os principais aspectos do filme, com um talento forte, sempre refletindo tudo. Descobrindo teu blog aqui e agora. Já linkei ao meu, o Apimentário (conhece?), e já me tornei seu seguidor aqui tb. VOU PROCURAR MAIS DO CINEMA DE Tarkovsky, preciso mesmo. abraço!

    ResponderExcluir
  2. Esse filme é meu preferido da filmografia de Tarkovski, acho que o fato dele ser preto e branco mostra mais expressividade nas tonalidades escuras e mais claras, e os sentimento que se deseja despertar, mas sem um direcionamento fixo ou tendencioso, alias, como você comentou, e muito boa suas criticas desde já Parabéns, as obras desse diretor ao meu ver, deixa livre a percepção do espectador para ser recebido de diversas maneiras.

    ResponderExcluir