terça-feira, 20 de setembro de 2011

[CRÍTICA] Harakiri


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Título original: Seppuku
Direção: Masaki Kobayashi
Roteiro: Shinobu Hashimoto
Elenco: Tatsuya Nakadai (Hanshiro Tsugumo), Akira Ishihama (Motome Chijiiwa), Shima Iwashita (Miho Tsugumo), Tetsurô Tanba (Hikokuro Omodaka), Rentarô Mikuni (Kageyu Saito)
Ano: 1962
Duração: 133 min.


Ambientado num período do Japão feudal em que o Xogunato desfez diversos clãs de samurais, Harakiri lida com a história de um dos milhares de guerreiros que se viram sem o amparo de seu senhor, responsável por garantir seu sustento. Num dos momentos mais dramáticos da história destes exímios manejadores de espada, muitos se viram forçados a cometer harakiri, um suicídio honroso defendido pelo código dos samurais.

É neste cenário que encontramos Hanshiro Tsugumo (Tatsuya Nakadai), um destes samurais desafortunados, que está decidido a cometer harakiri, e pede a Kageyu Saito (Rentarô Mikuni), senhor do Clã Iyi, permissão para ter a honra de realizar o ritual em sua propriedade. Lá Tsugumo ouve de Saito a história de Motome Chijiiwa (Akira Ishihama), um samurai que lhe pedira o mesmo favor e fraquejou na última hora, obrigando os membros de seu clã a forçá-lo à conclusão do ritual. O que Saito não sabe é que as histórias de Motome e Tsugumo estão intimamente relacionadas.

Primeiramente é preciso elogiar o trabalho de composição de Tatsuya Nakadai, que transforma Tsugumo num indivíduo complexo e fascinante, a começar pela forma plácida e formal com que encara sua morte iminente, ao mesmo tempo em que se expressa de maneira quase cômica durante o primeiro ato, quando pergunta ao senhor do Clã Iyi, por meio de um gesto, se ele se referia ao harakiri de Motome, sempre que Saito interrompe sua narrativa sem deixar claro sobre o que estava falando.


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Conforme a narrativa se desenrola Tsugumo revela novas camadas de sua personalidade a Saito e, consequentemente, ao espectador, tornando a trama mais sombria e dramática, e a atuação de Nakadai é essencial para que essa mudança gradual de tom funcione com naturalidade. O ator é talentoso ao transmitir desde impotência de Tsugumo diante do sofrimento da filha e do neto, até seu orgulho inabalável na tentativa de adaptar os preceitos de sua vida como samurai, encorajando o neto a lutar contra a doença que o acomete, assim como ele lutava pela vitória nos campos de batalha.

A história não fica atrás da qualidade da atuação de Nakadai. A fim de ressaltar toda a tragédia vivida por Tsugumo, o roteiro investe em dolorosas ironias, como a miséria do samurai e sua família, que atinge seu momento mais dramático durante a chegada da primavera, criando um contraste cruel entre a doença da filha e do neto, e a eclosão da vida que marca a chegada da estação. Outra delas é quando Tsugumo se dá conta de que poderia ter salvo sua família vendendo suas espadas, mas não o fez por apego à glória de seu passado, levando seu genro a sacrificar-se, dando início à cadeia de eventos que custou a vida de toda a sua família.

Masaki Kobayashi valoriza o roteiro potencializando cada aspecto da narrativa. Notem, por exemplo, como o barulho dos passos do samurai sobre as pedras do pátio, onde Motome faz seus últimos preparativos para o ritual, aumenta a ansiedade presente na cena, e a sensação de morte iminente. E também não há como ignorar a trilha sonora pontual de Tôru Takemitsu, que utiliza batidas esparsas para sugerir um destino inescapável, à medida que se aproxima a hora do harakiri de Motome.

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Outro bom momento da direção, aliada à belíssima fotografia de Yoshio Miyajima, é quando acompanhamos a espera de Tsugumo e Miho (Shima Iwashita) pelo retorno de Motome. A aflição e o desamparo sentido por ambos são acentuados pela casa vazia, mergulhada em sombras e numa atmosfera agourenta, que mais tarde se justifica, quando descobrimos o destino do rapaz.

Mas é no ato final que diretor, atores, fotografia e montagem alcançam seu ápice, e Harakiri atinge seu status de obra-prima. De início reparem como Tsugumo aparece em várias ocasiões “enquadrado” por homens portanto lanças atrás dele, todas firmemente alinhadas e apontadas para o personagem. Mais tarde estes mesmos lanceiros aparecem segurando suas armas com hesitação, não mais apontando para Tsugumo com a mesma firmeza, indicando sutilmente o abalo provocado ao moral daqueles homens após ouvirem do samurai toda a história por trás do harakiri de Motome, e o resultado do confronto de Tsugumo com os três samurais diretamente envolvidos na morte do genro.

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A direção de Kobayashi e a fotografia de Miyajima também brilham no excepcional duelo entre Tsugumo e Hikokuro Omodaka (Tetsurô Tanba). Plasticamente belo, sua preparação chega a ser tão significativa quanto o combate em si. Vemos os adversários atravessando um cemitério que mais se assemelha a um mar de lápides, para logo em seguida entrarem num corredor de bambus açoitados pelo vento, até chegarem a um descampado onde uma ventania anuncia uma tempestade. Tudo sugere a presença da morte, de uma fatalidade iminente, enquanto a plantação de bambus ainda remete às espadas feitas do mesmo material usadas por Motome em seu harakiri forçado, servindo para aumentar a “sede de vingança” de Tsugumo.

E aqui chegamos ao ponto-chave de Harakiri: as motivações de Tsugumo. No fim descobrimos que não é apenas vingança o que move o protagonista, mas também seu desejo de ser punido pelo orgulho que o impediu de ajudar sua família quando ainda era possível. Na maior das ironias da trama, Tsugumo apoia-se firmemente nas tradições de sua classe guerreira, e em seu respeito ao código de honra dos samurais, para levar a termo sua vingança. Fazendo uso justamente daquilo que alimentou seu orgulho e condenou sua família, Tsugumo ataca a Casa do Clã Iyi, expondo a podridão que nela instalou-se graças aos que desprezaram o código de honra.

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É na batalha final entre Tsugumo e o Clã Iyi que Harakiri mostra a que veio. O desrespeito do clã às tradições leva-o simbolicamente à ruína. Após expor as falhas morais de seus adversários, Tsugumo usa seus últimos minutos de vida para enfrentá-los fisicamente, a fim de chegar à sala que guarda a armadura do antigo senhor do clã, símbolo das tradições e códigos morais que alicerçaram sua formação. Assim que atinge seu objetivo, Tsugumo arranca a peça de seu local de destaque, e a arremessa no chão, demonstrando seu desprezo a um símbolo que já considera vazio de significado, graças à corrupção que o cerca.

A morte de Tsugumo, e os esforços de Saito para preservar a imagem de seu clã perante a sociedade, em conjunto com a imagem da armadura do antigo senhor, restituída ao seu antigo pedestal, apontam para uma vitória agridoce do clã. Mas, no último instante, a peça é envolvida por uma névoa agourenta, que anuncia um futuro sombrio para o Clã Iyi, talvez pior que o destino final de Tsugumo e sua família.

Nota 5 de 5

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