sexta-feira, 23 de setembro de 2011

[CRÍTICA] Sob o Domínio do Medo

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Título original: Straw Dogs
Direção: Sam Peckinpah
Roteiro: David Zelag Goodman e Sam Peckinpah
Elenco: Dustin Hoffman (David Sumner), Susan George (Amy Sumner), Peter Vaughan (Tom Hedden), T. P. McKenna (Major John Scott), Del Henney (Charlie Venner), Jim Norton (Chris Cawsey), Donald Webster (Riddaway), Ken Hutchison (Norman Scutt), Len Jones (Bobby Hedden), Sally Thomsett (Janice Hedden), David Warner (Henry Niles)
Ano: 1971
Duração: 118 min.


Sob o Domínio do Medo é sobre o despertar da macheza de um nerd, quando este decide viver na cidade natal da esposa, habitada por “bárbaros” que não fazem a menor questão de esconder o interesse sexual que nutrem por ela, praticamente uma ninfeta. Simples assim.

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Tem mais texto ali embaixo, a propósito...

A direção de Peckinpah não abre espaço para sutilezas, pelo contrário, ele não poupa esforços para deixar bem claro sobre o que trata sua história. Se temos um sujeito inteligente e com relativa sensibilidade artística, casado com uma mulher altamente desejável num local cheio de homens que não estão nem aí se a moça é comprometida, por que criar um clima desconfortável e hostil gradativamente se você pode fazê-lo nos primeiros minutos? E é exatamente isto que o diretor faz. Logo na abertura somos inteirados do papel de todos os personagens, da relação entre deles, e do que pode vir a acontecer.

Por exemplo, a primeira imagem que temos de Amy (Susan George) é de seus mamilos entumecidos cobertos por uma fina blusa de lã que não deixa dúvidas de que a moça não está usando sutiã. Este apelo sexual logo abre espaço para a introdução de Charlie (Del Henney), seu ex-namorado, um brutamontes que aprecia descaradamente os “faróis” da moça, mesmo que logo atrás venha David (Dustin Hoffman), seu marido, que de cara nota o que está rolando ali. Na cena seguinte David entra num bar para comprar cigarros, e é recebido com olhares nada acolhedores, que o encaram como um intruso, o que ele é de fato: um americano inteligente e recatado cercado por um bando de irlandeses beberrões de língua solta e tão civilizados como trolls.

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Daí que Amy, além da gostosura que é, ainda enfia na cabeça que, tudo bem, vamos viver aqui pra você realizar suas pesquisas de coisas altamente nerds longe da cidade grande, mas, David, meu querido, é melhor você aprender a ser macho de verdade se quiser sobreviver num lugar onde eu sou o objeto sexual mais desejado das redondezas, e "civilização" é um negócio que termina assim que um sujeito começa a pensar com a cabeça debaixo, algo que fazem com muita freqüência por estas bandas. E qual é a melhor forma de fazer seu marido bundão se tocar que você precisa de defesa contra os ogros que ameaçam violá-la das formas mais sórdidas e doentias possíveis? Provocando-os com seu corpo para que seu ele veja que as intenções dos caras não são nada boas.

Acontece que David não tá afim de se meter em encrenca com homens que podem trucidá-lo em dois tempos caso compre uma briga, mesmo que sua esposa passe a cobrar-lhe atitudes mais viris, e mesmo sentindo-se intimidado pela mera presença dos trogloditas que trabalham na construção de sua garagem, sempre prontos a abusarem de sua complacência à primeira oportunidade. Ser frouxo é mais cômodo que meter o dedo na cara deles e mandar que parem de lamber sua esposa com os olhos, correto? Não exatamente.

Como dito lá no início, o que Peckinpah quer mostrar é a transformação de David em um homem que mereça o respeito do meio hostil em que se encontra, e para isto as coisas devem ficar mais feias pro lado dele. Começa com o dia que resolvem matar o gato de Amy, e pendurá-lo no guarda-roupa do casal (!). A moça, claro, fica puta da vida, acha aquilo a gota d’água, e cobra de David uma atitude PRA ONTEM!

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Ok, temos um conflito para movimentar a trama. David se vê sem saída, e, como um sujeito inteligente e metódico que é, no dia seguinte arma toda uma situação para confrontar os homens que trabalham na obra de sua garagem, a fim de saber quem foi o filho da puta que matou o gato. Primeiro pede que ajudem-no a levar uma enorme armadilha de urso pra dentro de casa, e pendurá-la sobre a lareira. Daí oferece uma cerveja pra todos. É quando pensamos: “Certo, a armadilha foi uma tentativa de intimidá-los, e a cerveja um artíficio pra deixá-los à vontade, só pra desmascará-los logo em seguida com uma pergunta repentina sobre o gato”. Porém a Amy apronta das suas, e bota uma vasilha de leite na bandeja onde traz os copos de cerveja que serviu aos convidados, fazendo David sentir-se mais pressionado por ela. O que ele faz? Fica com raiva, e no lugar de enfrentá-los, aceita se juntar aos caras no dia seguinte para caçar patos, deixando Amy ainda mais puta com ele.

O ponto de virada da história acontece logo em seguida. David vai caçar, é abandonado pelo grupo no meio do nada, enquanto Amy recebe a visita inesperada de Charlie, que no início comporta-se como vítima de um estupro, mas logo parece encarar a investida do ex como uma forma vingar-se do marido. Porém, do nada, aparece Norman (Ken Hutchison), amigo de Charlie, que ameaça matá-lo caso não o deixe aproveitar-se da moça. Amy é estuprada.

É a partir deste ponto que Peckinpah começa a mudar o ritmo da história. Primeiro ele intercala o estupro de Amy com cenas de David sozinho no campo de caça, sem suspeitar do que está acontecendo naquele instante com sua esposa. O tédio de David e a traumática e revoltante situação de Amy estabelecem um contraste que torna toda a sequência mais impactante do que seria caso o diretor optasse por uma edição mais convencional.

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Depois, para que o formato da narrativa reflita a mudança sofrida pelo relacionamento de David e Amy após o ocorrido, Peckinpah, ao lado de seu trio de montadores, torna a história mais fragmentada, a começar pela sequência na igreja. Nela, Amy começa a reviver trechos de seu estupro a partir de estímulos visuais e auditivos presentes no local que levem-na a associá-los à sua experiência traumática. Conforme a narrativa prossegue, a crise de Amy é entrelaçada com a construção do problema envolvendo Henry Niles (David Warner) e Janice (Sally Thomsett), em que os cortes rápidos abrangem todas as frentes de ação (Amy na igreja, os números de mágica do pastor, o ruído das crianças soprando línguas-de-sogra, flashs do estupro, Henry e Janice saindo da igreja, e o irmão da garota começando a segui-la).

A tensão é meticulosamente construída através da montagem precisa, que passa a alternar entre Tom (Peter Vaughan), Norman e os demais se preparando para “caçar” Henry; e David e Amy saindo da igreja, indo pra estrada, e atropelando Henry. Tudo isto culminando no cerco à casa de David, em que os cortes alcançam um frenesi tão sufocante quanto a situação do casal, cativo em sua própria casa, cercado por homens sedentos por sangue. Tudo parece transpirar terror, desespero, desorientação e urgência.

David se posiciona entre os bárbaros que querem violar seu lar, como anteriormente violaram sua esposa, e o homem que estão caçando, uma situação que ironicamente funciona como um trabalho de parto deturpado, em que o rapaz tem que passar por todas as dores e derramar todo o sangue exigido para que renasça como um homem transformado, disposto a chegar às últimas conseqüências para defender algo além de sua esposa e de um homem tão reprovável como aqueles que querem matá-lo: sua honra.

Para o bem ou para o mau, David transforma-se naquilo que Amy queria desde o início, a um custo maior do que o previsto, em grande parte pago por ela mesma. Mas é fato que a mudança é irreversível, algo que o diálogo final deixa bem claro: “Não sei voltar pra casa.” - diz Henry, ao que David responde: “Nem eu.”

“Não mexe com quem tá quieto!”, parece dizer Peckinpah, em mais um de seus trabalhos controversos, quase um tratado sobre a deturpação moral de um indivíduo sob a pressão do meio que o cerca.


Nota 5 de 5

3 comentários:

  1. Bela crítica.

    O mais impressionante é a descoberta do instinto animal de David. O que começa como uma tentativa de proteger sua casa, seu castelo. Torna-se diversão, um brutal jogo de pega-pega o qual, cada instante é saboreado.

    "Eu peguei todos eles"

    David é o verdadeiro "vilão". Um dos mais surpreendentes e inesperados de todos os tempos, desde que HALL se revelou em 2001.

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  2. Pensar que nos tempos atuais um cara como Dustin Hoffman é substituído por James Mardsen...

    O que eu posso comentar depois disto?

    Aproveitei a tua boa idéia. Acho que quando estrear A Hora do Espanto e Sob o Domínio do Medo, vou revisitar os clássicos! Funciona melhor até como comparação (a memória não é, e nem nunca foi como antes)!

    Abraços!

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  3. Ótimo filme, ótima crítica!! infelizmente é mais um clássico que terá uma refilmagem desnecessária! e como o Márcio Sallem disse, é sempre bom revisitar um clássico quando este está prestes a ser vítima da falta de criatividade de hollywood! Rodrigo,seu blog está de parabéns!!

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