sexta-feira, 2 de setembro de 2011

[CRÍTICA] Sangue Negro

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Título original: There Will Be Blood
Diretor: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson
Elenco: Daniel Day-Lewis (Daniel Plainview), Paul Dano (Paul Sunday / Eli Sunday), Dillon Freasier (HW), Ciáran Hinds (Fletcher)
Ano: 2007
Duração: 158 min.


Desde seu lançamento em 2007 fala-se muito das múltiplas interpretações possíveis de Sangue Negro, que vão desde uma crítica às duas principais forças que movem os Estados Unidos, o dinheiro e a religião, até um conto moral sobre os excessos da ganância e da religiosidade, e como cada uma delas pode levar um homem à ruína, se praticadas sem amarras morais. O filme ainda permite um enfoque psicanalítico, em que as duas ideologias opostas representadas no filme refletem o embate entre pulsões contraditórias do inconsciente humano pela supremacia na vida de um indivíduo, comunidade ou nação.


Essa multiplicidade de leituras atesta o enorme talento de Paul Thomas Anderson, que realizou com Sangue Negro seu trabalho mais maduro, acertando em muitos níveis ao focar sua história em Daniel (Daniel Day-Lewis), um homem ganancioso que tira sua riqueza da extração de petróleo. A própria imagem das torres usadas para extrair o precioso líquido do subsolo, trazendo-o à tona num jorro negro, também é rica nas possibilidades de interpretação, que vão desde a sexual (seu negócio é sua única fonte de prazer aparente, e as torres remetem à ejaculação) até a religiosa (seu poder é proveniente do subsolo, apontado por muitas religiões como a localização metafísica do inferno).


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O “inferno” também se faz presente na trama, no momento em que um jato de petróleo se incendeia, e Eli (Paul Dano) encara com temor a visão das enormes labaredas que sobem das entranhas da terra, enxergando nelas o erro que cometeu ao permitir que o “diabo”, representado por Daniel, invadisse seu território com suas máquinas “chupadoras de sangue negro” (e reparem na imagem acima como o halo formado pelo reflexo das chamas na lente da câmera parece formar um olho diabólico em torno da cena).

O filme justifica tanto seu título original (“haverá sangue”) como o brasileiro, por meio dos diversos acidentes em que o sangue de trabalhadores mortalmente feridos na construção e manutenção das torres de extração se mistura com o produto de seu trabalho, e a fonte na qual Daniel sacia sua “sede”.


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Thomas Anderson procura fugir do convencional ao privilegiar o silêncio em grande parte do filme, deixando que suas imagens contem a história, aliado à linguagem corporal dos atores. O posicionamento das câmeras é propositalmente “descuidado” em diversas cenas, e a fotografia é a mais natural possível, captando a luz de cada ambiente sem filtros ou alterações aparentes. Essa “crueza visual” é justificada pelas forças em estado bruto que se manifestam por meio da ganância desmedida e do fanatismo religioso de Daniel e Eli, respectivamente.

A trilha sonora contribui significativamente na tarefa de reforçar essa noção de um mundo bruto e cru, que serve de palco para o duelo de poderes ancestrais. É ruidosa, opressiva, incômoda, atemorizante, chegando a provocar uma inquietação maior do que muitos filmes de terror. Composta por Jonny Greenwood, a trilha ajuda a construir a atmosfera subjetiva que permeia os fatos objetivamente apresentados na tela. É como enxergar a paisagem da consciência humana, enquanto ouvimos a “radiação de fundo” do inconsciente, no qual pulsões tentam a todo instante romper suas barreiras, e saciar seus desejos sem o filtro da moralidade. Trata-se de um conflito de polaridades primordiais, que ocorre sem cessar, mesmo quando tudo parece calmo e próspero.


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Além da trilha sonora, a natureza dos antagonistas também incomoda. Daniel e Eli são dois personagens por quem não nutrimos nenhuma simpatia, representantes de dois extremos ideológicos que todos conhecemos. E é justamente esta repulsão inicial que torna-os atraentes, pois, embora a maioria de nós prefira não abraçar tais extremismos, conhecemos a história de muitos que cedem à tentação de entregar-se a eles, e instiga-nos a curiosidade mórbida de relancear os caminhos que preferimos não seguir.

Daniel entrega-se a uma avidez desmedida, uma ganância cujo fim é ela mesma. Ele não persegue um objetivo maior ou mais nobre, algo no qual investirá seus ganhos. Daniel só deseja conquistar mais e mais, mesmo que o force a negligenciar seu relacionamento com a única pessoa por quem nutre algum afeto, e afastar-se dela quando surgem complicações que o obrigariam a concentrar-se mais numa parte de sua vida, que o manteria afastado daquela que sacia sua fome de poder. Daniel odeia qualquer ser humano, algo que não hesita em admitir, e deseja isolar-se de qualquer vestígio de humanidade, conforme suas conquistas aumentam.


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Eli é seu perfeito oposto. É um homem que vive do povo, embora a imagem que cria de si o mostre como alguém que trabalha para o povo. Seu poder depende da convivência com outros seres humanos. O acolhimento que recebe do povoado onde vive naturalmente desperta a inveja de Daniel, que por sua vez causa o mesmo a Eli, que não possui os recursos daquele para ir adiante com sua ambição de conquistar e construir um espaço onde possa ostentar seu poder.

Como não poderia deixar de ser num filme em que os principais conflitos concentram-se em dois personagens, Daniel Day-Lewis e Paul Dano deixam pouco espaço para que os demais se destaquem. Suas atuações tornam-se gradualmente mais viscerais conforme os interesses de um interferem nos dos outro, e passam a exigir sacrifícios cada vez maiores. Duas são as passagens mais emblemáticas neste sentido: a confissão de Daniel na igreja, atiçada por Eli; e o último encontro entre eles na pista de boliche. A potência das palavras e gestos impulsivos tornam o ar crepitante e a tensão palpável. É um marco na carreira de dois atores que se igualam em cena, apesar da diferença de idade.


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Sangue Negro é um verdadeiro êxtase cinematográfico proporcionado por um dos diretores mais promissores da atualidade. Paul Thomas Anderson é um gênio em formação que aqui reinventa-se uma vez mais, mostrando um cinema em estado bruto que, ainda assim, permanece como arte da mais elevada grandeza.


Nota 5 de 5

3 comentários:

  1. Maravilha de crítica! Gosto tanto de Sangue Negro, e já fazia um tempo que eu não o revisava através de um texto. Um dos melhores do P.T.A. com certeza!

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  2. Sou fascinado por Sangue Negro, principalmente porque Paul Thomas Anderson pareceu demais Kubrick nesse filme, e nos tempos de hoje, não é incongruente dizer que ele, ao menos em estilo, almeja ser como o mestre.

    Pena que, assim como o tal, ele seja tão "estranho". Gostaria que cineastas como ele, Aronofsky, Fincher e Nolan fossem mais ativos e participativos. Lançar um filme a cada 2, 3 anos é maltratar o coração de quem gosta de cinema.

    Parabéns Rodrigo, você continua 10!

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